sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A crônica e o conto

A CRÔNICA E O CONTO

Onde termina a “crônica” e começa o “conto”? Esse é o questionamento que, não raro, tenho visto.
Com efeito, muitas vezes a crônica confunde-se com o conto. Mas, que fique bem entendido, não é qualquer crônica que se assemelha ao conto. Quando a crônica recebe um tratamento lingüístico mais apurado, como o uso de várias figuras de linguagem, quando um pequeno enredo é desenvolvido, principalmente com diálogo; é que ela traça fronteiras muito próximas do conto. Tão próxima, que muitas vezes, é difícil estabelecer uma linha divisória. No entanto, podemos enumerar algumas características da crônica que podem ser confrontadas com as do conto.
Personagens
Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção da personagem, o cronista age de maneira mais solta. As personagens não têm descrição psicológica profunda; são levemente caracterizadas (uma ou duas características), suficientes para compor seus traços genéricos, com os quais, qualquer pessoa pode se identificar.
Nas crônicas de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), por exemplo, as personagens-parentes são construídas em torno de uma única idéia ou característica: Rosamundo é o distraído; Altamirando, o mau-caráter; Bonifácio, o nacionalista xenófobo, isto é, que tem aversão a estrangeiros.
Em geral, não têm nomes: é a moça, o menino, a velha, o senador, a mulher, a dona de casa. Ou, se têm, são nomes comuns, como: dona Nena, seu Chiquinho, para só citar esses nomes.
Às vezes, o cronista cria personagens, mas sempre a partir de uma matriz real, isto é, pessoas reais que se tornam personagens.
Narrador
Enquanto no conto o narrador (protagonista ou observador) é um personagem. Na crônica, o cronista sequer tem a preocupação de colocar-se na pele de um narrador-personagem. Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo; pois, o cronista parte de experiências próprias, de fatos que testemunhou (com certo envolvimento) ou dos quais participou:
Diz que era um menino de uma precocidade extraordinária e vai daí a gente percebe logo que o menino era um chato, pois não existe nada mais chato que menino precoce e velho assanhado.
Mas deixemos de filosofias e narremos; diz que o menino era tão precoce que nasceu falando. (PORTO, Sérgio; O Menino Precoce; in: Garoto Linha Dura)
Por isso, a crônica tem, quase sempre, um caráter confessional, autobiográfico.
Em alguns casos a narrativa é feita na terceira pessoa através de pessoas reais que se tornam personagens envolvidas em acontecimentos reais.
O Assunto
Conforme vimos na fragmento, o assunto de uma crônica é sempre resultado daquilo que o cronista colhe em suas conversas; das frases que ouve; das pessoas que observa; das situações que registra; dos flagrantes de esquina; dos fatos do noticiário; dos incidentes domésticos e coisas que acontecem nas ruas. Portanto, o assunto da crônica, geralmente, está centrado em uma experiência pessoal. Ao passo que o conto, não raro, é produto da imaginação, da ficção.
O cronista “pode” numa mesma crônica abordar diversos assuntos, desde que estes estejam ligados entre si por uma mesma linha de raciocínio.
O Desfecho
No conto há um conflito e, geralmente, um desfecho para ele. Como a finalidade da crônica é analisar as circunstâncias de um fato e não concluí-lo, o desfecho é, praticamente, inexistente.
“Vamos supor que você surpreenda um garoto pobre tremendo de frio e olhado fixamente para um pulôver novinho na vitrina duma loja. Ora, isso dá uma excelente crônica. Você relataria o flash, a cena em si, mas não o desfecho: o menino comprou ou não o pulôver? Nada disso. Acabando de "pintar" o quadro, terminaria o texto, deixando ao leitor a tarefa de refletir sobre a miséria, a fome, a má distribuição de renda, a injustiça social etc. É essa, muita vezes, a finalidade da crônica e a intenção do cronista. Seu texto não tem resolução, não tem moral como na fábula, é aberto para que cada leitor crie o final que melhor desejar. O cronista, no fundo, deseja que seu leitor seja um co-autor.” (ASESBP, Associação dos Escritores de Bragança Paulista)
A Linguagem
O cronista procura trazer para suas crônicas a oralidade das ruas. Daí ser predominante nas crônicas a linguagem coloquial. Muitas vezes, o cronista rompe com os padrões lingüísticos; desrespeita a norma culta para introduzir um linguajar de bate-papo (do botequim, da esquina), de conversa-fiada; todos carregados de gírias.
“[...], pois o artista que deseje cumprir sua função primordial de antena do seu povo, captando tudo aquilo que nós outros não estamos aparelhados para depreender, terá que explorar as potencialidades da língua; buscando uma construção frasal que provoque significações várias (mas não gratuitas ou ocasionais), descortinando para o público uma paisagem até então obscurecida ou ignorada por completo.” (SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios)
O Diálogo
É a presença do diálogo na crônica, que faz com que ela se aproxime do conto. Mas, na crônica, o diálogo é forma de interação com o leitor, principalmente, através de perguntas lançadas ao ar; ou então, para manter um formato que se aproxime do bate-papo, sua característica marcante:
[...] Ainda ontem, parado às seis e meia da tarde na esquina das Avenidas Montagne com Champs Elysées, na certeza de que não encontraria um táxi, disse para o operador de rádio de uma emissora carioca que estava comigo:
— O jeito é a gente ir de metrô.
E ele: Comigo não, velhinho. Trem em cima da terra já dá bronca, não sou eu que entro num trem que corre num buraco. (PORTO, Sérgio; Cartão-postal; in: Rosamundo e os outros)
Essa forma de interatividade cria uma importante cumplicidade com o leitor.
Conclusão
A crônica tem, hoje, uma linguagem própria, um espaço definido e independente - no jornal ou em qualquer outro veículo de comunicação. Não é superior ou inferior ao conto (como é classificada por alguns críticos). Ela é literatura graças ao trabalho consciente dos cronistas-escritores, que fizeram e fazem de seu ofício uma profissão de fé.
“[...] Conscientes do papel de historiadores do momento fugaz, eles informavam o que se passava a seu redor com a intenção de deixar um testemunho para a posteridade" (ARNT, Héris. Jornalismo literário. In: Revista Logos: comunicação e universidade. Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de Comunicação Social; Vol. 1, p.24; 1990.
Machado de Assis, Olavo Bilac, Humberto Campos, Raquel de Queirós ou Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubens Braga, Paulo Mendes, Paulo Francis, Arnaldo Jabor, Érico Veríssimo e tantos outros, cultivaram-na ou cultivam-na com peculiar engenhosidade, criatividade e assiduidade. ®